sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Loucura

Olhei nos olhos da loucura e vi você.
Despido de seu animal, trajando um comportamento sociável de alta costura.
Atitudes engomadas e palavras de manga comprida.
Consciência passada a ferro, com todo o esmero.
Cabeça no travesseiro e dinheiro na conta, tudo normal.
Mas...
uma voz rompe o sossego.
Aquele sino não para de tocar.
Um grunido.
O sono embebido de suor te acorda, e se vai.
A cama machuca as costas.
Trêmulas pernas te levantam, mas não te sustentam.
Cambaleante, o banheiro se aproxima.
Antes do choque, um baque.
Pausa.
Você olhou no espelho e viu a loucura nos olhos.
E caiu.

Olhei nos olhos da loucura e me vi.
Rindo do sangue que varre as ruas,
jorrando das urnas,
torcendo para o tiro acertar a cabeça do bandido.
Qual bandido?
De um lado, a arma da fome.
Do outro, a fome como arma.
No meio, eu e você.
E uma bala.
Quem está perdido?
A justiça clama pela cidade.
O Rio se tranca em casa com medo do povo.
As ruas faltam o trabalho e a escola, esvaziando as pessoas.
A segurança pública defende a tese de que o prefeito é prioridade.
Está decidido?
O banho de balas à cada cartucho de lama se esvai com o bueiro pelo sangue das manchetes do ostracismo de amanhã.

Com as mãos sujas, olhei nos olhos da loucura e vi a sanidade.
Perplexa com todo esse caos.
Segurando uma arma.
Um corpo extendido no chão.
Homens correndo mata adentro.
Eu estou dentro ou fora?
E eles?
As lentes recortam a realidade em sanduíches de audiência.
Eu estou com fome.
A sanidade me olhou nos olhos e me saciou com um beijo de boa noite.

Mas eu acordo. Um dia, acordo.
Me levanto e vou para o espelho.
Cadê você?
Olhei, à procura da loucura, e não a encontro.
Mas ela está aqui, a espreita.
Eu posso senti-la correndo pelos meus dedos,
formigando meus pés,
saindo pela minha boca.
Contida nas contingências do cotidiano.
Enclausurada num corpo.
Numa casa. Numa tarefa. Num grupo.
Numa cidade.
Numa idade, sem nenhuma identidade com a realidade.
Esfacelada na parede, com seus miolos espalhados na decoração.

Olhei nos olhos da loucura e vi o amor.
Fantasiando sabores e comendo mobília.
Endividados pela carne, pagando promissórias fatias de indiferença.
Na boca, o gosto amargo do feliz para sempre,
perdido nas papilas gustativas da desilusão.
Um objeto necessário, refém de projeções,
utilitário na busca das respostas que sabemos não existir.
Mas dormimos abraçadinhos e juramos que desta vez é.
Talvez seja, quem sabe?
Apago em meio ao sonho do verdadeiro.
O amor me olhou nos olhos e me ignorou.

Mas te peguei pelo braço.
Preciso do teu sexo.
Minhas baterias estão fracas, e meu hálito, quente.
Tenho sede do teu orgasmo refrescando meu ego,
teu olhar de tesão me adulando,
enquanto finjo que gozo e olho no relógio.
Eu trabalho amanhã, me desculpe.
Tá na hora de ir embora.
Beijos!
Chego em casa e me sinto só.
Durmo no vazio do seu cheiro.

Mãe, suplico pelo teu perdão e teu carinho!
Pai, me dê a mão e me guie pela escuridão!
Tenho medo do clarão da janela!

Acordo e acendo a luz.
Na cabeceira, uma bíblia e uma arma.
Nas mãos, um copo d'água.
Um gole, um versículo, uma bala.
Olhei nos olhos da loucura e vi a salvação.

Um gole, um versículo, uma bala.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Esquina

Atravessei a rua e segui adiante.
Não dava mais para olhar para trás.
Na mesma velocidade em que o norte me chamou, veio o leste e mudou o cenário.
Quando parei para pensar, e ver, não estava mais lá. Restou apenas a sombra do último passo antes de sumir por entre os prédios.
Dinâmica, esta realidade.
Dinâmica e dura.
Na incerteza da busca, perdida entre passado e futuro, o presente sofre com a ausência.
Vácuo entre o outrora deslocado e o imponderável por vir.
A angústia antes do sono agora se espalha por entre meus dedos, contaminando tudo o que toco.
Desperto e disperso.
Acordado em desacordo.

Sigo adiante. Uma avenida se avizinha em minha vista.
Mais uma dura esquina a se cruzar.
Encruzilhada entre dois caminhos levemente opostos e igualmente satisfatórios.
A dor da perda é certa. Talvez a da vitória, também.
O conforto desolador de olhar para trás e se arrepender tá logo alí.
A ilusão do controle e de alguma previsibilidade, também.
Estarei eu no comando?
Sem certeza na escolha, certo mesmo é ter de escolher.

Adiante, além da esquina, nos dois lados deste cruzamento, há de tudo o que não posso enxergar com os olhos.
Deixo o coração como guia e atravesso o pavimento.
A cada passo, o presente se dilui na quilometragem e o passado vira a presença pesada e pesarosa do que não houve ou não haverá mais.
Sempre vai ser assim.
Sempre.
Parece fácil, parece difícil, mas é apenas uma constatação lógica:
as inevitáveis escolhas nos levam e deixam o rastro da destruição.
Darwinismo ou destino?
Depende de onde se posiciona o espectador.
Na lente do fotógrafo, um frame transitório, perdido no espaço-tempo.
Nas letras, o devaneio ansioso e redundante de quem não quer escolher, mas sabe que, parado, não vai dar para ficar.
E vai atravessar para um dos lados.

E lá na frente, o que este novo caminho me reserva?

Nada além de duas ruas com uma esquina no meio...

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Pulsão de vida

Pai abusivo e mãe depressiva.
Pai preguiçoso e mãe alcoólatra.
Pai ausente e mãe permissiva.
Pai adúltero e mãe controladora.
Pai agressivo e mãe passiva.
Pai destrutivo, mãe reclusa.
Pais divorciados, morou com a mãe.
Pais divorciados, morou com o pai.
Pais divorciados, morou com algum outro parente.
Pais divorciados, viveu em mudança.
Órfão de pai, mãe enérgica.
Órfão de mãe, pai negligente.
Órfão de pai e mãe.
Filho adotivo. Sabido ou descoberto com o tempo.
Criado pelos avós.
Criado pelos tios.
Criado por institutos, instituições e instituídos.
Criados pela rua.

Cruzes de berço, de casa, de sangue.
Deus e o Amor na ausência e na presença.
A primeira crença, a primeira noção de sociedade.
A primeira dor. A dor fundamental.
O fantasma e a cruz.
A eterna sombra sobre nossos ombros.

Abandono.

Sim, estamos sós, eu e você. Todos nós.
Lutando contra nós mesmos, nosso passado que vai e volta.
E nós o repetimos.

E nos tornamos pais e mães.

Ninguém é vítima. Ninguém tem culpa.
E todos temos muita. Tanto como pais quanto como filhos.

Somos a interseção entre dois acidentes, e um acidente em si.

Magia da criação.

A dor que impulsiona o belo e alimenta o monstro. Tudo ao mesmo tempo.

Vida.